25/12/2008


COMO UM CÃO’

Naquela manhã sua vida tomara um caminho diferente. Não dobrou a esquina habitual que o levaria ao trabalho, pois antes, como se uma simples lembrança pudesse desvelar uma vida inteira, ele desistira dos dias e desandara silenciosamente em direção a um silêncio maior. Sentiu emergir toda a angustia e tensão que acumulara como patrimônio e que na noite anterior quase lhe explodira a cabeça e o coração. Invadiu-lhe uma vontade enorme de vomitar, mas não o fez, apenas pronunciou algo quase inaudível e não dobrou a esquina. Atravessou a rua, abaixou a cabeça, sentiu o sabor do sal atravessar-lhe os lábios e caminhou, pensando que só queria distanciar-se de tudo, esquecer tudo. O trabalho passou, a família se foi, o amor secou, a casa não há mais, podia caminhar em paz, pois já não havia mais nada. Abaixou a aba do boné como se quisesse fechar os olhos para sempre. Agora via apenas seus passos sobre a calçada esburacada enquanto ouvia a própria respiração, suave como a de um peixe. Sentia o sal ressecado sobre as pálpebras e o suor que se acumulava nas sobrancelhas. Esquecia quase tudo e começava a não sentir nada, já não reconhecia o caminho por onde andava. Subidas, descidas, avenidas, ruas, praças, a cidade já não se via, a estrada, pontes, pequenas vilas, o sol ardente da tarde, morno no poente, a chegada da noite, os músculos e o estômago doloridos, a cabeça vazia, a chuva que começava a cair, a porta de ferro que se fechava, a caixa de papelão vazia, o corpo exausto o faria adormecer pensando num passado feliz e perdido. Sob o papelão, como um palhaço, ainda insinuou um ínfimo sorriso, emocionado, triste e morto, como o seu amor pela vida.


Nenhum comentário:

Postar um comentário