a chave de vidro
18/01/2009
25/12/2008
A JANELA
Numa das filas do Poupa-Tempo, a velha senhora acompanha o adolescente, provavelmente seu neto, que aguarda para ser atendido. Ela veste uma blusa de lã bem maior que suas medidas, sobre um surrado vestidinho florido que certamente não a protege do dia frio; e ele, magrinho, também se veste de um jeito simples.
Ao contemplá-los caminhando juntos, temos a sensação de estarmos olhando para nós mesmos, de uma forma estranha e múltipla, como se abríssemos uma janela e pudéssemos olhar para dois lados do infinito: a história da avó e tudo o que aquela senhorinha teve que atravessar, penar, sofrer, sorrir e chorar pra chegar até aqui e, mesmo exaurida, ainda amar e cuidar desse menino, este outro infinito, oposto e futuro.
Meio sem jeito, ele se deixa levar pela mão da avó, que lhe segura pelo braço e o conduz docemente. Se o infinito da avó nos emociona, o do menino nos enche de incerteza e preocupação, o que faz com que o desejo dela passe a ser também o nosso, o de que ele caminhe em paz sobre o futuro.
Ela saiu de casa naquela manhã para cobrir, na periferia da cidade, uma passeata em favor do desarmamento, da paz e da não violência. Talvez tenha se emocionado em algum momento do cortejo em que muitas famílias lamentam os seus mortos, filhos da violência, mas talvez não, talvez tenha se preocupado apenas com o melhor ângulo de suas fotografias, a melhor expressão da pobreza, tristeza e miséria. Foi quando a estética e a importância da informação se transformaram em contraditória realidade: sua câmera e a bolsa de acessórios foram violentamente puxadas e, por ter instintivamente resistido, ainda levou um golpe violento no braço, o que a fez chorar, talvez de dor, talvez de ódio, talvez por assustar-se com a fragilidade da paz.
Passo todos os dias por uma casinha que tem uma arquitetura peculiar: dois cômodos muito pequenos, um sobre o outro, ligados por uma escadinha externa de madeira. À frente dela estão sempre sentados alguns jovens que compõem, aparentemente, uma galera da pesada; sempre mal encarados e mal humorados, deixando claro a corrosão que o desemprego e o ócio estão lhes causando. É sempre melhor não encará-los, pois está claro que por muito pouco eles irão questionar o porquê de nossa curiosidade. Hoje, quando passei, eles estavam lá, sem camisa, sob o sol e, como sempre, queimando um, mas pude perceber uma microscópica mudança no olhar e na postura de todos eles, um relaxamento, uma ‘distensão’, pois de dentro do barraco brotavam uns acordes límpidos e transformadores. Era Waiting in vain, era Bob Marley acalmando os meninos e reluzindo outros sonhos, outras possibilidades.
Naquela manhã sua vida tomara um caminho diferente. Não dobrou a esquina habitual que o levaria ao trabalho, pois antes, como se uma simples lembrança pudesse desvelar uma vida inteira, ele desistira dos dias e desandara silenciosamente em direção a um silêncio maior. Sentiu emergir toda a angustia e tensão que acumulara como patrimônio e que na noite anterior quase lhe explodira a cabeça e o coração. Invadiu-lhe uma vontade enorme de vomitar, mas não o fez, apenas pronunciou algo quase inaudível e não dobrou a esquina. Atravessou a rua, abaixou a cabeça, sentiu o sabor do sal atravessar-lhe os lábios e caminhou, pensando que só queria distanciar-se de tudo, esquecer tudo. O trabalho passou, a família se foi, o amor secou, a casa não há mais, podia caminhar em paz, pois já não havia mais nada. Abaixou a aba do boné como se quisesse fechar os olhos para sempre. Agora via apenas seus passos sobre a calçada esburacada enquanto ouvia a própria respiração, suave como a de um peixe. Sentia o sal ressecado sobre as pálpebras e o suor que se acumulava nas sobrancelhas. Esquecia quase tudo e começava a não sentir nada, já não reconhecia o caminho por onde andava. Subidas, descidas, avenidas, ruas, praças, a cidade já não se via, a estrada, pontes, pequenas vilas, o sol ardente da tarde, morno no poente, a chegada da noite, os músculos e o estômago doloridos, a cabeça vazia, a chuva que começava a cair, a porta de ferro que se fechava, a caixa de papelão vazia, o corpo exausto o faria adormecer pensando num passado feliz e perdido. Sob o papelão, como um palhaço, ainda insinuou um ínfimo sorriso, emocionado, triste e morto, como o seu amor pela vida.
24/12/2008
adeus favela.
Sem camisas e descalços atravessávamos aquele vale, verdinho sob o sol quente, quando ainda não existiam os becos e vielas atuais. Correndo para o mergulho na Lagoa do Barro Branco, flutuávamos sobre cobras, lagartos e flores que queriam durar para sempre, mas não duraram, pois a cidade debruçou seu véu sobre a brisa suave da infância, criando um outro mundo, onde hoje tantas vidas se encontram, se digladiam, se encoitam ou suavemente se beijam, pois ali também é possível o amor, tanto, tanto. Sobre inclinações improváveis, esgotos lamentáveis e ratos quase domesticados eles construíram seus cantinhos de privacidade mínima onde resistem às provações dos governos e dos tantos deuses que povoam seus sonhos. Projetam um futuro improvável nos filhos que nascem todos os dias, mas o mal está cada vez mais próximo de seus portões e tantas vezes nem respeita esse limite e invade seus lares, pois há sim os que querem socializar o inferno.
Tá lá o corpo estendido no chão do barraco, tiros, facadas e um prego enfiado na testa. Há uma mina dágua sob a bananeira que resiste e refresca quem passa pelo beco sufocante, mas que ainda lembra um oásis. Há os sorrisos infinitos das crianças e jovens em todos os becos. O menino sem maldades é assassinado por quase nada, a comunidade o vinga imediatamente e no dia seguinte temos duas famílias no cemitério, uma do lado da outra, enterrando seus jovens filhos. O marido das cinco mulheres e pai de dezoito filhos morreu assassinado ali em cima sem saber que uma das filhas havia escrito uma redação de duas páginas sem um único erro de português.
A favela sangra, mas também é cultural, tem rádio barracão maracatu arlequins e flautins pelos becos e vielas, tem samba circo teatro e cinema no campinho, tem grafite jazz e rap, tem áfrica angola e moçambique, tem carnaval vem cáprarua, tem crianças ensaiando trenzinho caipira em seus quintaizinhos, tem uma árvore sendo plantada, tem morte e vida severina e um menino armado ali na esquina, que irá fechar a Casa Amarela. Adeus Favela.